Nossa intenção com esse texto é traçar o desenvolvimento da argumentação de Platão, nos quatro primeiros livros do diálogo “A República”, no intuito de compreender o conceito de Justiça, como conceito base para sua filosofia política.
Como Platão se serve do diálogo como estrutura literária para a composição de seu texto, procuraremos delinear a argumentação seguindo seu estilo, ou seja, utilizando das personagens como portadoras dos conceitos que são tratados até que por fim Sócrates, porta-voz de Platão, fazendo uso de sua maieutica venha a conceituar Justiça.
Não é nosso objetivo aprofundar uma discussão mas sim provocar o leitor numa busca por fundamentar sua postura ética, principalmente no que tange à questão de Justiça, com um pensador Clássico como Platão.
Céfalo
Platão inicia seu diálogo dando a localização e os afazeres das personagens, principalmente Sócrates que atua como narrador-personagem na história.
Ao irem ao Pireu para uma festa celebrada em honra da deusa (cf. 327a) Sócrates, acompanhado de Glaucon (irmão de Platão), é reconhecido por Polemarco que imediatamente, ao perceber que Sócrates estava para retirar-se, o impede e convida-o para que fosse à sua casa no intuito de terem um prazeroso diálogo. Começa a apresentação de algumas personagens que terão importante participação na seqüência do diálogo.
O importante a salientar, nesse primeiro momento, é o diálogo que se inicia com Sócrates e Céfalo no momento em que Sócrates chega à casa de Polemarco. Ë de suma importância esse primeiro momento, pois o mesmo delineia a necessidade de se definir justiça, ou seja, é ele quem vai pautar a discussão.
Ao ser interpelado por Sócrates sobre como encara a velhice, Céfalo faz inúmeras descrições e distinções sobre tal tema, o mais importante a ser salientado esta na sua afirmação a respeito da proximidade da morte, o que faz com que todo homem passe a repensar a vida e, principalmente, como a viveu no sentido de estar digno para gozar o pós-morte que, afinal, estando ou não certas as lendas e crenças, são preocupantes a todo aquele que esta para encará-la. Pois, nas próprias palavras de Céfalo: “(...) depois que uma pessoa se aproxima daquela fase em que pensa que vai morrer, lhe sobrevem o temor e a preocupação por questões que antes não lhe vinham à mente.” (cf. 330d) E tais questões são a possibilidade de se ter vivido uma vida justa, evitando-se assim o Hades.
E, deste modo, toda a discussão, que perpassa os livros de I a IV da República, versa sobre esse tema tão próprio: A Justiça.
E como não poderia deixar de ser Céfalo tem sua própria definição, ou seja, que: “Não ludibriar ninguém nem mentir, mesmo involuntariamente, nem ficar a dever, seja sacrifícios aos deuses, seja dinheiro a um homem, e depois partir para o além sem temer nada (...)” (cf. 331b) que Sócrates vai simplificar dizendo: “(...) dizer a verdade e restituir aquilo que se tomou.” (cf. 331d).
Sócrates vai propor uma série de argumentos que vão inutilizar essa conceituação, principalmente ao se referir que se alguém que em pleno juízo lhe der algo (no exemplo ele usa armas) e, após, num momento em que se encontra desarrazoado lhe pede que seja devolvido é ou não justo o fazer? A este questionamento Céfalo se vê sem possibilidades de responder e, por força maior (ir preparar-se para o sacrifício) se retira do diálogo, passando a responsabilidade de continuar o mesmo para seu filho Polemarco.
Polemarco
Após uma tentativa, praticamente inútil, em defender o argumento de seu pai, Polemarco acaba por definir de maneira distinta, ou seja, chega à conclusão de que Justiça é: “(...) auxiliar os amigos e prejudicar os inimigos.” (cf. 334b). Mas a grande problemática que enfrenta diante de Sócrates está nos termos que usa em sua definição: amigo e inimigo.
Ao final de uma vasta discussão, Sócrates lhe mostra que a Justiça não vê a quem ela é útil, se a amigos ou a inimigos. Deste modo Sócrates lhe mostra que a justiça é praticada por que a pessoa é justa e não em vistas à quem ela é direcionada, ou seja, se só pratica-se a justiça quando auxilia a um amigo, não é justiça, pois na verdade é por ser justo que se pratica a justiça e não porque o ato justo é feito a um amigo, sendo assim é impossível ao justo pratica a injustiça, mesmo que esta seja a um inimigo, pois é de sua natureza fazer a justiça.
Trasímaco
Não contente com a situação do diálogo, Trasímaco, famoso sofista que torna-se personagem de Platão nessa obra, coloca Sócrates contra a parede afirmando que o mesmo fica somente a questionar, mas ele mesmo não oferece nenhum conceito de Justiça que lhe seja aprazível. Após uma longa introdução feita, mais como um requinte de estilo literário, Sócrates faz com que Trasímaco dê seu conceito de Justiça, o qual afirma que é: “(...) a conveniência do mais forte.” (cf. 338c). É claro que Sócrates o trata ironicamente, já na primeira refutação a tal conceituação, pois coloca que se Polidamas (lutador de pancrácio) por ser mais forte que todos os presentes e lhe é conveniente uma dieta a base de carne, então se torna justo ter uma dieta a base de carne por todos que presente se faziam na reunião. Fazendo, com isso, que Trasímaco se irrita-se cada vez mais e pusesse a definir melhor seu conceito.
Começa por defini-lo como sendo a conveniência do governante, pois este faz as leis como lhe apraz. Mas quanto a esse argumento, Sócrates demonstra com perfeição que é falacioso, tendo em vista que o bom governante (claro que num projeto ideal) faz leis com vistas à conveniência dos cidadãos e não de si mesmo, o que leva a conclusão que, nas palavras do próprio Sócrates:
(...) nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele mesmo, mas o que o é para o seu subordinado, para o qual exerce a sua profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o que lhe é vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz tudo quanto faz. (...) Portanto, Trasímaco, é desde já evidente que nenhuma arte nem governo proporciona o que é útil a si mesmo, mas, como dissemos há muito, proporciona e prescreve o que o é ao súdito, pois tem por alvo a conveniência deste, que é o mais fraco, e não a do mais forte” (Cf. 342e; 346e).
Após essa demonstração, por mais ardilosa manobra Trasímaco intenta em demonstrar que ser injusto é ser prudente e ser justo não passa de uma ingenuidade. Ao que Sócrates rebate e demonstra perfeitamente que a justiça só pode trazer satisfação e felicidade enquanto que a injustiça só traz desgraça e desventura. E, assim, “(...) jamais a injustiça será mais vantajosa do que a justiça (...)” (Cf. 354a).
Glaucon
Após este embate de Sócrates com Trasímaco, Glaucon não se dá por satisfeito e passa a interrogar a Sócrates propondo a existência de três modalidades de bens que os homens anseiam, são eles:
- Aqueles que queremos possuí-lo pelo puro e simples prazer de os possuir, pois geram tais prazeres por si só;
- Aqueles que queremos possuí-lo não só pelo prazer que proporciona por si só, mas também pelas conseqüências benéficas em os possuirmos;
- E, por fim, aqueles que queremos possuí-lo por que nos traz algum rendimento — seja em dinheiro ou em honraria —, apesar de não nos proporcionar prazer algum, muito pelo contrário, o mesmo nos é penoso.
E, dentro destas categorias de bens, Glaucon pede a Sócrates para que qualifique a Justiça, o qual a coloca como sendo um bem da segunda categoria, ou seja, que nos proporciona prazer por si só e pelas suas conseqüências. Glaucon o desafia ao afirmar que esse não é o parecer da maioria, pois é consenso, segundo Glaucon, que a Justiça gera honrarias, apesar de ser penosa e que deva ser evitada, quando possível. E, dessa forma, propõem a Sócrates um diálogo onde defenderia e louvaria a injustiça na expectativa de que Sócrates pudesse refutá-lo louvando, assim, à Justiça.
Glaucon propõem realizar a seguinte tarefa: afirma o que deva ser a justiça e sua origem, em seguida demonstrar que todos que a praticam o fazem por obrigação e não por escolha própria, pois, segundo ele, “(...) é natural que procedam assim, porquanto, afinal de contas, a vida do injusto é muito melhor do que a do justo, no dizer deles.” (cf. 358c). Desta monta, Glaucon argumenta que a justiça tem sua origem em leis que impedem a prática da injustiça e oferece o exemplo do anel achado por Giges que ao girar o engaste para o lado de dentro da mão o torna invisível e ao girar de volta para fora o torna, novamente, visível. E com esse poder, Glaucon afirma que qualquer homem, justo ou injusto, percorreria o mesmo caminho, ou seja, o da ambição e, portanto, da prática da injustiça, visto estar impedido de ser reconhecido ao praticar a injustiça e, assim, parecer ser justo. E conclui seu argumento afirmando que o melhor, desde esse seu ponto de vista, é se parecer justo, sendo na verdade injusto. Em suas próprias palavras temos:
(...) ninguém é justo por sua vontade, mas constrangido, por entender que a justiça não é um bem para si, individualmente, uma vez que, quando cada um julga que lhe é possível cometer injustiças, comete-as. (Cf. 360c)E continua sua argumentação afirmando que entre dois homens, um justo e outro injusto, se cada um a sua maneira for perfeito, um na justiça e outra na injustiça, o que for justo se granjear para si fama de injusto, mesmo não o sendo, sofrerá as penas como se fosse um homem injusto, já o homem injusto se granjear para si fama de justo, terá todas as honrarias de homem justo, mesmo não o sendo. Isto demonstra, segundo Glaucon, que as honrarias não serão pelas evidências de justiça mas pelas aparências de justiça. O cerne da argumentação de Glaucon, que é defendida por Adimanto, também, está no fato destes acreditarem que: “(...) a aparência, como me demonstram os sábios, ‘subjuga a verdade’ e é senhor da felicidade (...)” (cf. 365bc).
Finalizando a discussão Sócrates, interlocutor de Platão em seus diálogos, apresenta que Justiça é cada um fazer aquilo que lhe cabe na sociedade, nem mais nem menos. Conceito discutível, com certeza, mas fica a provocação, será que fazemos ao menos o que nos cabe em nossa socidade? e o que, enquanto cidadãos do século XXI de uma socidade ocidental latino-americana, nos cabe a ser feito?
Assim temos uma formulação, feita em discussão, sobre o conceito de Justiça! Fica, para nós, mais uma vez a provocação de, ao menos, discutirmos nossos posicionamentos na sociedade!
2 comentários:
Grande Vicentão, parabéns pela iniciativa. Sobre o texto, alguém poderia perguntar: mas afinal de contas, o que é mesmo a Justiça para Platão?
Grande Rodrigo, verdade, esse texto foi bem provocativo, principalmente pelo fato de Filosofia Antiga não ser minha praia!!! Eu te retorno a pergunta, afinal o texto, por mais provocativo que tenha sido, tento expor justamente essa questão!! O que é Justiça em Platão?
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